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A epidemia oculta: saúde mental na era da Covid-19

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Ser jornalista que escreve sobre saúde tem lá seus perigos. O mais óbvio deles é uma espécie de hipocondria intermitente: achar que você tem os sintomas daquela doença sobre a qual está estudando para a próxima reportagem a ser publicada. Nesses dez anos de experiência na área, eu me sentia particularmente imune a esse fenômeno. Afinal, sempre tive uma vida relativamente saudável e não sofro de nenhuma condição crônica ou incapacitante. Mas tudo mudou em abril de 2020: durante o processo de apuração para esta reportagem, de algum modo senti e vivenciei muitos dos incômodos e frustrações que serão descritos nas próximas páginas. O sono não é reparador como antes. O cansaço me agarra cada vez mais. A incerteza sobre o dia de amanhã é apavorante. Enfim, a cabeça opera em outra frequência na era da Covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.

Convenhamos: vivemos tempos únicos. Até certo ponto, é esperado sentir-se mal, ansioso, com raiva, insatisfeito ou triste diante de tantos desafios que aparecem na nossa frente. Como mostra um levantamento com 4 693 brasileiros feito pela Área de Inteligência de Mercado do Grupo Abril, em parceria com a MindMiners, não estou sozinho nessa: 54% dos cidadãos estão extremamente preocupados com a situação da Covid-19

Para entender melhor esse turbilhão de sensações que invadem a cabeça, resolvi procurar nos livros de história exemplos de crises do passado que poderiam ajudar a entender o que vivemos hoje. Será que existiu algum momento em que nossos tataravós passaram por uma situação similar?

O primeiro exemplo que apareceu nas leituras e nas entrevistas foi a gripe espanhola, uma pandemia que, apesar do nome, começou nos Estados Unidos no ano de 1918, durante a Primeira Guerra Mundial. Soldados americanos levaram o vírus influenza para os fronts de batalha na Europa, onde a doença se disseminou para tudo que é canto e matou entre 17 e 50 milhões de seres humanos. 

Mas essa não é uma comparação justa: os modelos de comunicação e locomoção eram absolutamente diferentes há um século, quando todos dependiam de navios a vapor e telegramas. “Hoje conseguimos cruzar o mundo de avião em poucas horas, o que certamente contribuiu para a disseminação do coronavírus, e a tecnologia permite que as informações cheguem a todo mundo quase que instantaneamente pelas redes sociais”, analisa o médico americano Damir Huremovic, editor do livro Psychiatry of Pandemics (A Psiquiatria das Pandemias, sem tradução para o português). 

Do ponto de vista de saúde mental, o episódio de 1918 também não serve como modelo para os tempos atuais: especialidades como a psiquiatria e a psicologia davam seus primeiros passos nas décadas iniciais do século 20 e as emoções humanas ainda não eram consideradas um fator preponderante para a saúde. “Falamos do momento em que Sigmund Freud (1856-1939) publicava seus trabalhos mais importantes, que definiriam a área”, lembra Huremovic. Curiosamente, o próprio Freud vivenciou a perda de uma filha por causa da gripe espanhola. Mesmo assim, o pai da psicanálise não chegou a refletir ou se debruçar sobre os efeitos da pandemia sobre a psique em seus escritos.

Outras tragédias, inclusive brasileiras, marcaram época e repercutem no cérebro e no imaginário até hoje. É o caso do incêndio na boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, em 27 de janeiro de 2013, que vitimou 242 pessoas. Ou do rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, no dia 25 de janeiro de 2019, que resultou em 259 óbitos.

Mas, de novo, sobram diferenças e faltam semelhanças entre passado e presente. Você com certeza ficou chocado com as notícias lá atrás. Mas, se não mora em algum desses municípios brasileiros, sua vida não foi diretamente alterada durante o ocorrido ou depois dele. Seus compromissos não foram cancelados, tampouco havia incerteza sobre o dia de amanhã. Agora é diferente.

 Em um período sem precedentes como este, nada mais justo e sensato do que ouvir o que nos diz a biologia. “Quando estamos diante de uma ameaça à vida, ativamos o mecanismo de luta ou fuga”, resume o psicólogo Felipe Ornell, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Esse mecanismo, herdado dos nossos mais remotos antepassados, se traduz hoje numa palavra corriqueira: estresse. Há milhares de anos, o homem das cavernas que andava pelas savanas e encontrava uma fera no caminho tinha que se decidir entre partir para cima ou sair correndo. Estresse na veia. 

E é essa reação que deixa o organismo preparado para agir. O cérebro lança um comando para uma glândula que começa a produzir cortisol, o famoso hormônio do estresse. Isso, por sua vez, faz o coração disparar, com o objetivo de levar mais sangue para os músculos trabalharem. A respiração se acelera na tentativa de captar mais oxigênio. Estoques de energia são liberados para servir de combustível. Graças a esse sistema veloz e afinado, nossa espécie sobreviveu às adversidades. 

O problema é que o inimigo de 2020 não tem rosto, nem dá pra fugir dele: como pode estar em qualquer lugar, representa um perigo permanente, o que dispara o gatilho da tensão a todo instante. “Em paralelo ao coronavírus, vemos surgir uma pandemia de medo e estresse”, interpreta Ornell. Eis o começo de uma dura jornada mental, que pode desembocar em ansiedade, depressão… 

Apesar dos constantes avisos de cientistas de que uma pandemia estava por vir, a verdade é que o mundo inteiro foi surpreendido pelo coronavírus: no comecinho de 2020, nenhum presidente, senador ou deputado imaginava que estávamos à beira do caos. E esse despreparo, de certa maneira, contribuiu para bagunçar ainda mais o coreto.

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