*Por Cláudio Silva
São 6h50 da manhã e o dia ainda está meio escuro. Chove bastante e o vento parece fazer aumentar a sensação térmica. Após um café tomado apressadamente, por conta do horário e da minha natural lentidão pela manhã, saímos, eu e a minha caçula. Vou levá-la à escola. Enquanto o veículo cumpre parte do trajeto fazemos uma oração, e aproveito para perguntar sobre as aulas do dia. Aquele é um tempo só nosso, e em que podemos conversar livremente, apesar de se resumir a alguns breves minutos. Ela estudou bastante para as avaliações que fará hoje em algumas disciplinas. Aliás, tem-se dedicado intensamente com vistas ao exame vestibular que prestará no fim do ano. Diz que quer ser advogada. Parabenizo pelos seus esforços e a incentivo a continuar se dedicando, enfatizando que os resultados serão a conseqüência lógica de sua dedicação. Nestes momentos somos ao mesmo tempo pais, amigos, psicólogos e filósofos. Tudo na ânsia de orientá-los adequadamente. Porque queremos que acertem na profissão e na vida.
No caminho, uma cena que se repete todos os dias, uma mãe também levando seu filhinho à escola. Porém em condições bem diferentes do conforto ali dentro do carro. Mãe e filho tentam se defender da chuva e do vento procurando se ajeitar como podem debaixo do pequeno guarda-chuva, que mal dá para abrigar uma, quanto mais duas pessoas. Solidariamente, sempre damos uma carona para os dois. Hoje mais ainda, porque além da chuva , devem estar sentindo frio. Posso observar que o pequeno não está suficientemente agasalhado. Outro dia, tentando “quebrar o gelo”, como fazemos nessas situações, puxei conversa com o garoto, perguntando sobre o que gostaria de ser quando crescer. A mãe, animada, se apressou em dizer que ela acha que ele tem jeito para veterinário. “Ele adora animais” , diz ela.
Eu e aquela mãe estamos vivenciando a mesma situação. A de cumprir o nosso papel de responsáveis nesta etapa tão importante da formação dos nossos filhos.
Olhando para ela, é como se voltasse alguns anos no passado e visse a minha, hoje já falecida, fazendo as mesmas coisas quando eu devia ter a idade do seu filhinho. Não importava se era dia de sol, calor, chuva ou frio, lá estava a Dona Hilda me ajudando a sair da cama e depois de tomarmos um café me acompanhava até o “ grupo escolar”, como chamávamos. O meu, tinha o pomposo nome de Grupo Escolar Nilo Peçanha. Corria o ano de 1964 e estávamos em Londrina (Pr).
Mamãe acordava bem mais cedo para preparar as refeições do dia antes de sair para o trabalho. Prestava serviços como empregada doméstica em casas de família. Papai era auxiliar de motorista de caminhão e viajava. Lembro que ela ficava atentamente me observando tomar o café. Uma frase nesses momentos era inevitável, num misto de ternura e autoridade: “Coma meu filho! Você deve ficar bem forte para poder estudar e aprender bastante para um dia ser alguém na vida! E não precisar passar as dificuldades que seu pai e eu passamos para tocar a vida e educar você e seus irmãos”, dizia.
Ir para a escola era algo sagrado. Não importava o sacrifício que fosse necessário. Se chovia, o barro era certo, porque as ruas não eram asfaltadas. Os calçados eram envoltos em sacos plásticos para não se entrar na escola com os pés enlameados. O importante era não faltar às aulas. Assim, naqueles dias chuvosos, mamãe me fazia vestir a “capa de chuva” , que ela mesmo confeccionara com todo o carinho do mundo, aproveitando, por imposição minha, veja só, a nossa toalha de mesa cheia de bolinhas coloridas.
Registre-se que aquela capa foi confeccionada por insistência minha. Porque eu, criança, desejava uma igual a de vários coleguinhas da escola. Como eu achava bonitas as capas de chuva! Parece que conferiam uma aura de importância. E fui descrevendo para a mamãe, que pacientemente desenhou um molde e depois confeccionou o meu “tesouro” em sua velha máquina de costura. Só errei na descrição do gorro ( porque ninguém é perfeito afinal de contas!), o que acabou me custando uma grande decepção. Afobado, com a idéia de também ter a minha capa de chuva, me atrapalhei e acabei descrevendo um cone ponteagudo, que mamãe detalhadamente também confeccionou. Quando tudo estava pronto, fiquei torcendo para que enfim chovesse e assim eu pudesse estrear meu valioso presente. O dia enfim chegou, e pude vestir entusiasmado a minha capa de bolinhas coloridas com o “bendito” gorro em formato de cone. Mas, quando entrei orgulhosamente no pátio da escola, como um artista que adentra garbosamente um palco iluminado, foi uma gargalhada geral. Fui saudado pela criançada com um sonoro coro de “Olha o palhaço! Viva o palhaço!” Resultado: deixei o gorro de lado! Mas mantive a capa. Ah não, dela eu não me afastaria! Até hoje me emociono e rio ao mesmo tempo, lembrando deste episódio tão terno envolvendo a minha saudosa mãe. Amor de gente pobre e simples. Amor de mãe e de pai, que faz toda a diferença.
Neste momento, talvez represente muito pouco o que eu e essa senhora estamos tentando fazer pelos nossos filhos. Mas me vem à lembrança uma frase que lí anos atrás no Jornal GAZETA DO POVO, de Curitiba (Pr), num artigo escrito por um juiz , Dr Albino de Brito Freire, ao se referir também a alguns gestos de cuidados com uma filha adolescente . Dizia ele: “Filha, estou tentando fazer a minha parte, você deverá fazer a sua.”
Aquele menino, assim como a minha filha, poderá até optar por seguir por outros caminhos. Mas os, aparentemente pequenos, gestos atuais de dedicação dos pais, estão neste momento ajudando a dar significância ao que eles estão fazendo, e serão importantes no futuro para impulsioná-los nos embates da vida.
P.S.: Depois daquele dia, nunca mais ví aquela senhora com o seu menino. Rogo que tenham realizado os seus sonhos. Hoje, novembro de 2017,seis anos depois, a minha filha está concluindo o seu sonhadocurso de Direito na Universidade Estadual de Ponta Grossa, já foi aprovada no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil/ OAB e tirou nota máxima na banca de TCC ( Trabalho de Conclusão de Curso). As raízes dessa história perdem-se no tempo, e passam pela atenção dedicada dos pais dando o seu possível no momento, mesmo que seja uma simples capa de chuva confeccionada com a toalha de mesa. E a história vai se fazendo na vida daqueles que virão.Valeu a pena.
*Cláudio Silva é mestre em Educação, ex- presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação-UNDIME/PR, foi Secretário de Educação de Apucarana-PR (gestões 2005-2008 e 2009-2012 ) e Secretário de Ensino Superior ( 2012)